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Estranho Cinema – por Marta Neves
O conjunto atual de pinturas de Elton Lúcio continua um processo iniciado há alguns anos, em que figuras solitárias e impenetráveis ao olho nos devolvem, como espelhos, nossa solidão de observadores. Mas se antes elas jaziam sobre espaços limpos, vazios ou monocromáticos, agora aparecem cercadas e até invadidas por elementos múltiplos, multidões de arabescos, azulejos, ladrilhos coloridos, texturas que se interpenetram. Antes a arquitetura como antinatureza confinava esse sujeito e marcava seu isolamento do mundo. Agora, ainda que a paisagem natural muitas vezes apareça como visão de uma janela, árvores furam o assoalho, alastram suas sombras por ele, paredes liquefazem-se, espaços são invadidos por flores (mesmo que em padrões de estamparia) e o piso abre-se como terra escavada. Numa das pinturas as paredes desabaram e uma selva confusa de bolas invade o ambiente. Não parece mais então haver aí separação entre natureza e cultura – ao menos se pensarmos que a arquitetura, os parques planejados, as flores de plástico, os papéis de parede e até o mundo do videogame são agora nossa segunda natureza. Assim, nesse novo cômodo invadido que é o mundo, as figuras de Elton, em meio à profusão de cores e imagens, estão ainda mais sós, mais inatingíveis – tornam-se imagens arredias. São visíveis ainda, são atravessadas pela paisagem eloqüente de formas da vida, mas são invisíveis também em sua insistente impossibilidade de contato com essa mesma vida.
Embora Elton tenha carregado para os cenários que compõe sua experiência anterior no teatro (interessante que não é o ator solitário nesse espaço pintado que se move e sim nós, a platéia, dançando em torno dos acidentes de perspectiva, dos escorridos de cores; nós compomos o “drama”), é noutra arte que penso ao ver seus quadros. A multidão de elementos coloridos que aí está é extremamente ruidosa, uma sobreposição de sons confusos, ao passo que a figura exposta é completamente muda (normalmente de costas ou com o rosto coberto, ela se esquiva ao contato, ela não fala). E é isso que a isola ainda mais, é o que a torna impenetrável. Explico-me com uma cena de Frenesi, de Alfred Hitchcock. Um estrangulador de mulheres procurado pela polícia invade um escritório onde a secretária, sozinha, prepara-se para fazer o lanche que trouxe de casa. Há um pequeno diálogo, ameaças, cinismo e sabemos, naquele momento, que a mulher não tem como escapar. Mas queremos ver, queremos estar lá (para que, afinal, se nada podemos fazer?). Só que a câmera, traindo nossa pulsão de olhar, recua, a porta é fechada, o recuo continua no corredor do edifício, mais ainda, na descida das escadas e mais: a câmera, em seu afastamento na cena sem corte, insere-se na rua onde os sons dos carros e das pessoas que passam nos mostram a desolação implacável da moça, agora distante de nós. O barulho do mundo faz do acontecimento de que fomos apartados puro silêncio e impotência. Isso é esmagador como o “miseenabyme” da arquitetura que se desdobra e se afunda, deixando o indivíduo à própria sorte nos quadros de Elton.
Mas essa participação afetiva, típica dos filmes de entretenimento, pode fazer parecer que falo aqui de uma pura “pintura de entretenimento”, viva, colorida, sedutora. Há que se ter cuidado com o encantamento dessas pinturas que são cinema de outra natureza. A própria perspectiva é estranhamente aí trabalhada tanto para lembrar o ilusionismo criado dentro do domínio da verdade pelo Renascimento, quanto, por outro lado, para torcer e “difamar” essa ilusão. Elton embaralha as linhas e faz escorregar o ponto de fuga,diferentes angulações destroçam as paredes, fragmentos de variadas percepções removem a noção de totalidade do ambiente, planos separados parecem estar no mesmo lugar. Passeamos pelo espaço da pinturamas somos constantemente bloqueados pela dúvida, quando não nos devora um buraco aberto no chão dessa perspectiva cambiante, como acontece nas tramas dos jogos eletrônicos em que nossos avatares perdem constantemente suas vidas. Elton constrói deliberados erros de perspectiva, de representação (mas não será toda representação, na história da arte, um grande erro?), talvez para brincar com a sede que temos de uma imagem que nos torne proprietários do mundo, senhores absolutos da realidade. O cinema herdou da perspectiva monocular a ideologia do império do sujeito sobre a verdade. Mas Elton nos desmascara, melhor, nos saqueia as conquistas. Quando pensamos dominar o espaço aí pintado, somos confrontados com desconexões que nos confundem como acontece em PulpFiction, de Quentin Tarantino, em que vemos um personagem ser metralhado até a morte, para na cena seguinte surgir o mesmo homem caminhando tranqüilo pela cidade. O diretor parece dizer-nos: “viram a carnificina desejada? Estão satisfeitos? Pois agora voltem a seus assentos na sala de cinema. Nada aqui é real”. Só que Tarantino retoma o ilusionismo na trama do filme que podemos recompor depois do “susto” e Elton, ao contrário, oferece-nos cada vez mais espaços enganosos, dilaceramentos perspectivos, excessos decorativos que beiram o kitsch.
Cabe, então, um comentário final sobre a questão da beleza nessas pinturas. O que agrada inicialmente nos quadros de Elton é, na verdade, de uma beleza que perdeu a função em meio ao caos, é entropia decorativa que se soma ao deboche de ilusionismo. Assim como as figuras isoladas na multidão de elementos radiantes não são exatamente visíveis porque não se comunicam conosco, a féerie da tal multidão colorida não é exatamente uma festa visual porque, em sua falta de medida, cada elemento entrava o outro, num acúmulo indigesto. Mas a beleza existe aí, sim, estranha, convulsa, ou para além desses adjetivos e até das imagens nas quais eles grudam. Comparável mais uma vez às figuras de Elton, a beleza de seus quadros é arredia, incrível e fica num lugar qualquer, embora indefinido para os olhos.
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