Notícias

Grupo Corpo fará uma apresentação extra do espetáculo Triz nesta segunda-feira

A sensação de estar sob a mira da mitológica espada de Dâmocles, suspensa por um tênue fio de crina de cavalo, foi tão imperativa durante todo o período de gestação do novo balé do Grupo Corpo que acabou não apenas se impondo como o grande mote para a sua criação, mas servindo, também, de inspiração para o seu nome – Triz, palavra de sonoridade onomatopaica, que tem nos vocábulos gregos triks/trikós (pelo, cabelo) sua mais provável origem etimológica, simbolizada pela expressão por um triz (por um fio). Se, em Sem Mim, a tradição de começar no ano anterior a emprestar contornos tridimensionais à nova trilha havia sido quebrada por artes da distância continental que separava os dois autores (José Miguel Wisnik, de São Paulo, e Carlos Nuñez, de Vigo), em Triz, um impedimento físico de Rodrigo Pederneiras empurrou o início dos ensaios para o final de maio, quando a obra em processo costuma estar em franca maturação. Em plena recuperação da cirurgia que em meados de fevereiro reconstituiu um tendão do ombro e dois músculos de seu braço esquerdo (o bíceps e o subescapular), em maio, o coreógrafo rompeu o menisco do joelho esquerdo, e só depois de se submeter a uma nova cirurgia, pôde dar início, com a perna imobilizada, aos trabalhos. Para um ex-bailarino desinquieto, acostumado a coreografar demonstrando com o próprio corpo cada movimento concebido, a limitação física atuou de forma veemente em um processo de criação sobre o qual pairava já a afiada espada do tempo – exíguo demais para escrever as partes e orquestrar a partitura de 21 corpos sobre o espaço. Pesava ainda sobre sua cabeça, o brilho radical da música polirrítmica arquitetada por Lenine, construída apenas, e em aparente paradoxo, com instrumentos de corda. Neste cenário inóspito, onde a tensão da lâmina premia inapelável e indistintamente todos os integrantes da companhia, coube a Paulo Pederneiras operar o “milagre da transformação” – através da simples proposição de que a ideia opressora do limite e da angústia da superação deixasse a condição de mera adversidade para alçar o status de tema central e metáfora maior do balé. Com música especialmente composta por Lenine, coreografia de Rodrigo Pederneiras, cenografia e iluminação de Paulo Pederneiras e figurinos de Freusa Zechmeister, Triz, a trigésima quarta criação do Grupo Corpo, cumpre uma agenda nacional atípica. Sobe à cena pela primeira vez no próximo dia 30 de agosto no Palácio das Artes, em Belo Horizonte, onde fica até 3 de setembro, passa em seguida pelo Theatro Municipal do Rio de Janeiro (8 a 11 de setembro) e somente em novembro (20 a 29) ocupa o Teatro Alfa, em São Paulo, palco tradicional das estreias nacionais da companhia mineira de dança. Entre as temporadas carioca e paulista do novo espetáculo, o Grupo Corpo voa para o Sudeste Asiático e o Leste Europeu, com programas diferenciados. Em Bangkok (6 de outubro) e Singapura (11 e 12 de outubro), apresenta Sem Mim e Onqotô e, em Moscou (16, 17 e 18 de outubro), Sem Mim e Parabelo. Na turnê nacional, o programa duplo abre com Parabelo, balé de 1997, com trilha assinada por Tom Zé e José Miguel Wisnik. Cordas polirrítmicas A experiência de compor para o Grupo Corpo a trilha de Breu, balé de 2007, deflagrou uma mudança no processo criativo de Lenine. Habituado a recorrer a seu baú de canções como fonte primária antes de se lançar na criação de um novo projeto, ao se defrontar com a tarefa inédita de erguer 40 minutos de música instrumental para sustentar um espetáculo de dança, vivenciou uma espécie de sentimento de orfandade. A privação desta “cena de origem” o obrigou a se reinventar. Uma experiência tão transformadora e impactante que Lenine nunca mais visitaria o velho baú. Desta vez, como estímulo à criação de sua segunda trilha para a companhia, tratou de posicionar, ele mesmo, uma espada de Dâmocles sobre sua cabeça: construir uma topografia musical recortada por subversões rítmicas (uma paixão) a partir de um único leitmotiv e utilizando somente instrumentos de corda. Do berimbau à balalaica, do violino ao violão, da cítara à rabeca, da tambura ao bandolim, o copioso cortejo de cordas que povoa e imprime relevo à tessitura musical de Triz – assim como o tema central – tem suas possibilidades sonoras exploradas até as últimas consequências. A exceção que confirma a regra foi curiosamente o piano, o mais completo dos instrumentos, que comparece com... uma nota só – o ponto final e retumbante da trilha urdida por Lenine. Em dez temas especialmente compostos, duas digressões à norma pré-estabelecida pelo autor – que há exatos 30 anos estreava na cena musical com Baque Solto, álbum realizado em parceria com Lula Queiroga – atuam como licenças poéticas e contribuem para a imprevisibilidade da narrativa. Em Dando Corda, o tema melódico principal é reinventado através da interferência física no mecanismo de seis caixinhas de música, de melodias distintas, de onde são extraídas frações sonoras que, acionadas em sequência, dão vida e estranheza a uma variação primitiva do tema. Já em Corpo é a marcação rítmica produzida pelos pés, arrastados ou percutidos, e pela respiração dos bailarinos que dá o (des)tom do (des)tema, de dois minutos aproximados de duração. Concebida como uma única peça, de dez movimentos, Triz, a trilha, conta, entre outras, com as participações luminosas do violinista francês Nicolas Krassik – responsável pela rabeca que brilha solitária no tema de abertura (Acordando) –, e do Quinteto da Paraíba, formado por Yerko Tabilo e André Araújo (violinos), Ronedilke Dantas (viola), Caio Diniz (violoncelo) e Xisto Medeiros (contrabaixo) –, presença decisiva em duas faixas da trilha (A Corte e Corda), registradas ‘in loco’, no estúdio Peixe Boi, em Campina Grande. Com produção musical assinada a quatro mãos por Lenine e Bruno Giorgi, seu filho, que atua também como músico em diversas faixas, a gravação da “ópera instrumental” que inspira o novo balé do Grupo Corpo teve como base principal o estúdio O Quarto, no Rio de Janeiro, montado pelo jovem músico, que, depois de produzir o CD Chão e a trilha do filme Amor?, de João Jardim, contabiliza o terceiro trabalho de grande porte realizado em colaboração com o pai. (Cor)rompendo limites Enquanto Dâmocles, o anti-herói da lenda que remonta à Itália grega do século V a.c., preferiu se manter a uma prudente distância da espada a governar sob a sua mira, os irmãos Rodrigo e Paulo Pederneiras, ao contrário, parecem ter cuidado de afiar bem, cada um, a sua lâmina, emprestando mais contundência ainda ao potencial de risco do desafio. Com a mobilidade comprometida, o tempo correndo inexoravelmente contra ele e uma malha rítmica de uma complexidade desconcertante por destrinchar, Rodrigo Pederneiras interpôs um quarto obstáculo à construção de sua partitura de corpos. Os trios, incomuns em sua caligrafia coreográfica pela confessada dificuldade que sempre teve tanto de escrever para eles quanto de apreciá-los à distância (acha todos sempre muito parecidos), seriam, desta vez, a formação mais recorrente no balé. E mais: em consonância com o estado de desassossego em que se encontrava, ficariam, todos eles, por decreto, inacabados. Numa obra onde a ocupação do espaço reflete a intermitência e a dubiedade diabólicas operadas no tempo da música por Lenine ao longo de 38 minutos de trilha, a possibilidade de criar uma série de duos femininos atuou como lenitivo e respiradouro necessários tanto ao exercício da criação pelo coreógrafo, quanto à execução dos movimentos pelos bailarinos – que, nas formações de grupo, atuam em estado de tensão permanente, onde qualquer átimo, um triz que seja de imprecisão, pode ser fatal. Com cerca de quinze quilômetros de cabo de aço, Paulo Pederneiras ergue uma arquitetura cênica que alude à presença soberana das cordas na trilha de Lenine, ao mesmo tempo em que se impõe como poderosa metáfora das limitações impostas à equipe de criação e aos intérpretes do Grupo Corpo na construção de Triz. Tensionados e agrupados em módulos de 100, fios de aço de 5,5 m de altura recobrem praticamente toda extensão das paredes da caixa cênica, limitando as entradas e saídas dos bailarinos a três fendas assimétricas distribuídas entre o fundo e as laterais do palco. Representação hiperbólica da harpa de aço que compõe a caixa interna do piano, o espaço cenográfico criado por Pederneiras contrapõe a sensação de peso e barreira física, trazida pelo aço e pela monumentalidade das cortinas, à de transparência e leveza, forjada pelas frestas que irrompem entre as cordas. O jogo lúdico com a ideia de que o limite pode não passar de uma ilusão tem na ocupação pontual pelos bailarinos do espaço longitudinal entre a rotunda e a cortina de fundo o seu maior paradigma. A opção pelo fechamento das coxias acabou se revelando a espada apontada pelo diretor artístico, cenógrafo e iluminador do Grupo Corpo contra a própria cabeça. Normalmente sem obstruções, em Triz, a luz lateral terá de driblar dois obstáculos físicos. Depois de romper pelas frestas a cortina de cordas mais próxima e produzir na cena recortes sutis de luz e sombra, ela irá incidir necessariamente sobre a cortina oposta, que vai funcionar, então, como uma espécie de rebatedor. Uma injunção que faz com que em Triz, a iluminação trabalhe, de cabo a rabo, no fio da navalha. Qualquer diferença, por mais ínfima, de intensidade ou temperatura, para mais ou para menos, pode redundar na superexposição do cenário, eclipsando os bailarinos. Uma equação que Paulo pretende resolver através do emprego da difusão e de diversas gradações de branco. Freusa Zechmeister recorre a malhas inteiriças e ao uso exclusivo e blocado do preto e do branco para seccionar em duas metades, verticais e simétricas, o corpo dos bailarinos. A opção pelo corte longitudinal e pela ocupação, de cima a baixo, de cada lado do corpo com a antítese cromática do outro leva às raias a brincadeira em torno da relatividade do limite. Colocadas em movimento, as extensas massas de preto e de branco, tão claramente demarcadas na visão estática da forma, já não permitem mais que se precise sequer o corpo a que pertencem. Num espetáculo que se apropria do caráter opressor do limite como gatilho para a sua construção, os figurinos de Zechmeister surgem como o símbolo mais evidente (e pra lá de bem-humorado) de que a chave da superação pode estar na mera determinação de se manter em movimento.

Selecionamos os melhores fornecedores de BH e região metropolitana para você realizar o seu evento.