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Unidades da UFMG fechadas, pacientes desassistidos e pesquisas em risco: os efeitos da Stock Car

Ainda antes da corrida automobilística começar, os impactos já são sentidos em diferentes prédios e nos arredores do campus Pampulha

Em razão do impacto que as provas da Stock Car terão no campus Pampulha, várias unidades da UFMG vão interromper suas atividades nos próximos dias – algumas, parcialmente, outras totalmente. É o caso do Centro Esportivo Universitário (CEU) e do Centro de Treinamento Esportivo (CTE), já que a interdição feita no trânsito do entorno do Mineirão impossibilitou o acesso a essas unidades. 

É também o caso da Faculdade de Odontologia, que se viu obrigada a adiar uma disciplina de atendimento a urgências que começaria na sexta-feira, dia 16, em razão da dificuldade que os pacientes terão de acessar o campus. Por causa da corrida, a população mais carente do município fica sem o atendimento odontológico oferecido gratuitamente pela Universidade em parceria com o poder público.

Outras unidades estão sob o risco de verem anos de investimento em maquinário, animais, insumos e pesquisa serem comprometidos pelos efeitos nocivos da prova. É o caso da Escola de Veterinária, que passou os últimos dias se desdobrando para retirar animais do campus, e do Biotério Central, que, para piorar, não tem como fazer essa realocação e corre o risco de ver os seus ratos e camundongos afetados decisivamente pelos ruídos das provas – consequentemente, inutilizados para pesquisas.

Essa malha de efeitos incide sobre diferentes unidades, o que levará a Universidade a passar os próximos dias e semanas mitigando e mensurando danos e prejuízos, dos acadêmicos aos materiais, dos científicos aos financeiros.

'Estamos no escuro', diz coordenadora do Biotério Central

Outra unidade particularmente afetada pela realização da Stock Car nas fronteiras da Universidade é o Biotério Central da UFMG. Criada em 2013, a unidade é o local onde são criados ratos e camundongos para pesquisas científicas de alto nível, sejam da UFMG, sejam de outras instituições do estado, que adquirem ali o que de melhor se pode encontrar nesse campo. No Biotério, são produzidos animais padronizados de nível internacional, do tipo Specific Pathogen Free (SPF), o que confere a garantia de que estão livres de influências e agentes biológicos capazes de interferir nos experimentos que vão ser feitos com eles. Usado em pesquisas de ponta, esse tipo de animal é capaz de colaborar para a obtenção de resultados científicos robustos, confiáveis, homogêneos e reprodutíveis – que vão se transformar, no futuro, em vacinas, tratamentos e remédios novos.

Contudo, para que esses animais possam realmente ser usados em pesquisas de ponta, sua criação precisa obedecer a rigorosos protocolos de padrão internacional, ligados não apenas ao controle sanitário – que levam em conta aspectos microbiológicos, parasitológicos e imunológicos –, mas também à manutenção do bem-estar animal. Isso implica a necessidade de não promover nenhuma alteração imprevista em sua rotina – como colocá-lo repentinamente em meio a um barulho alto. Isso porque mesmo a menor variação desses protocolos pode gerar uma variação indesejada em sua biologia. O barulho, por exemplo, tem o potencial de fomentar a produção excessiva de hormônios ligados ao estresse, em se considerando a alta sensibilidade auditiva que os animais têm, se comparados aos humanos.

O risco vivido no momento, portanto, é de a realização da Stock Car no entorno da UFMG pôr a perder a possibilidade de se realizar pesquisas robustas no futuro com essa geração de animais – em suma, a prova pode jogar por terra anos de trabalho e um imensurável e ainda não contabilizado montante financeiro investidos em sua criação. Fica a questão: quem vai pagar essa conta?

“Os animais do Biotério são criados em condições sanitárias muito estritas, com controle rigoroso de temperatura, umidade, luminosidade, ruído. Todo o padrão sanitário deles é controlado nos mínimos detalhes. Não é possível movê-los de uma hora para outra; não é possível nem mesmo cogitar uma realocação, pois eles são criados em equipamentos especiais, em um sistema próprio de racks ventilados”, explica a professora Adriana Abalen, coordenadora da unidade. 

Adriana Abalen se desespera particularmente ao lembrar que a arquibancada da prova foi instalada justamente na frente do Biotério, na Avenida Rei Pelé. “Estamos a apenas 200 metros da pista, e as arquibancadas estão viradas para nós. Eu não estou nem dormindo de tanto pensar nisso. Criamos as medidas possíveis, mas não temos condições de avaliar se serão efetivas ou não, dada a falta de informação oferecida sobre o nível real de ruído causado pelo evento”, destaca Adriana, que lembra a diferença entre o nível de ruído informado oficialmente pela corrida e aqueles que foram efetivamente auferidos em testes livres.

Adriana também desmonta o argumento dos organizadores da corrida de que os shows realizados no Mineirão seriam uma justificativa para liberar a realização da corrida de carros no local. “Eles alegam a questão dos shows, dizendo que, se os shows podem ocorrer, a corrida também poderia. Ora, os shows acontecem dentro ou do outro lado do Mineirão, e nós já medimos os volumes de ruídos. Eles não ultrapassam os decibéis permitidos, dada a distância que o Biotério fica de lá. Já a corrida passará exatamente na frente da unidade. A diferença é clara. Nem é possível comparar", revolta-se a coordenadora.

Segundo Adriana, a equipe da unidade ficará de plantão durante todo o feriado para avaliar em tempo real a condição dos animais, mas pouco será possível fazer além do que já foi feito, pois os animais não podem ser retirados de lá. 

Farmácia e ICB

Os efeitos da realização da Stock Car no entorno do Mineirão disseminam-se por todo o campus Pampulha, mas incidem particularmente sobre as unidades situadas na sua fronteira Noroeste, que fará divisa direta com a corrida. Ali ficam, além da Odontologia, a Faculdade de Farmácia e o Instituto de Ciências Biológicas, por exemplo, onde há outros 30 biotérios – alguns deles, focados em roedores geneticamente modificados, o que redobra o problema, pois se trata de animais ainda mais sensíveis, capazes de entrar em convulsão por qualquer mínimo barulho.

“Aqui estamos falando de animais preparados para testes fisiológicos e metabólicos, o que os torna mais sensíveis para esses estímulos. No ICB, temos pesquisadores trabalhando com questões relacionadas ao comportamento e à parte neurológica, por exemplo. Para essas pesquisas, temos ratos audiogênicos, isto é, animais ainda mais sensíveis ao barulho. Em razão disso, variações mínimas do ambiente, como sons muito intensos, podem fazê-los colapsar, entrar em convulsão”, explica o professor Ricardo Gonçalves, diretor do ICB. As consequências desses colapsos são várias: “eles podem morrer, abortar ou se canibalizar, matar uns aos outros”, exemplifica o diretor. E, claro, ao sofrerem esses estímulos, podem se tornar comprometidos para as pesquisas a que estavam dedicados.

Em razão disso, muitos experimentos estão sendo interrompidos pelos pesquisadores nesta semana. “Não teve outro jeito, foi preciso interromper, porque a gente não sabe qual será o efeito dessa movimentação toda nas cobaias. Muitos pesquisadores pararam os seus trabalhos e só vão retornar na próxima semana, para ver como estão os animais em experimentação, ver se será possível dar andamento às pesquisas a contento”, afirma Gonçalves.

Urgências postergadas

Em virtude da dificuldade de acesso ao campus Pampulha causada pelo evento, a Faculdade de Odontologia precisou suspender e adiar duas disciplinas clínicas (de atendimento ao público) que ocorreriam na sexta-feira, dia 16. O problema mais grave diz respeito à disciplina relacionada às urgências, que são atendimentos de demanda livre. “A urgência é uma necessidade imediata do paciente; ela não pode ser adiada. O paciente chega na Faculdade de Odontologia com dor, e a gente atende por meio dessa disciplina. Contudo, dada a iminência de os pacientes não conseguirem chegar até a Faculdade em razão das restrições impostas ao trânsito, o que já está acontecendo, foi necessário suspender essa atividade clínica e orientar a comunidade a buscar outras alternativas nessa data, longe do campus, para não ficar sem atendimento”, informam consternados os diretores da Faculdade de Odontologia, João Batista Novaes e Patricia Valente Araujo.

A rigor, os próprios professores e estudantes dessa unidade já vêm enfrentando dificuldades para chegar ao campus desde o início desta semana, em razão das interdições que vêm sendo promovidas pelo poder público. Nesta terça-feira, relata a própria Patricia Valente, em torno das 16h, mesmo fora do horário de rush, a Avenida Carlos Luz (onde fica uma das principais portarias da UFMG, que dá acesso à Faculdade de Odontologia) encenava um engarrafamento que ia até a altura do shopping Del Rey, no sentido bairro, a direção da entrada da Universidade.

Atletas sem treinar

Poucos dias após o término das Olimpíadas, e às vésperas do início dos Jogos Paralímpicos de Paris, o tratamento dado pelo poder público e pela Stock Car ao Centro de Treinamento Esportivo (CTE) da UFMG – centro de referência nacional na preparação de atletas e sobretudo de paratletas de alta performance – é um sinal do valor que (não) é dado ao esporte quando ele não está diretamente ligado ao capital e à acumulação de riqueza pelas pessoas mais abonadas da sociedade. Segundo o professor Maicon Rodrigues Albuquerque, diretor do CTE, a unidade também se viu obrigada a fechar de quinta a domingo, 15 a 18, apesar de o trecho da avenida Alfredo Camarate onde fica a entrada da unidade ter supostamente ficado de fora da área interditada. (Conforme o Documento Operacional de Trânsito divulgado pelo poder público, o CTE, em si mesmo, está sob a mancha de interdição, mas a sua entrada não.)

“Ficou fora? Não sabemos. Ficou e não ficou. A verdade é que não fomos informados de nada. Tudo o que temos é incerteza. Não recebemos nenhum ofício, nenhuma comunicação da Prefeitura, nada. Hoje [terça-feira] eu consegui chegar aqui, mas e amanhã? E depois de amanhã? Não sabemos. Não fomos informados como será. Não fomos informados de nada. Então não temos como saber. Tentei contato com a BHTrans, mas também não consegui obter nenhuma informação. Como não conseguimos nenhuma garantia de que será possível chegar ao CTE com segurança, tivemos de decidir pelo fechamento, até para não prejudicar as pessoas que poderiam tentar vir para cá e não conseguir”, afirma o diretor.

Saiba mais em texto de Ewerton Martins Ribeiro para o portal UFMG.

Foto: Foca Lisboa

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