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Ciana Brandão e a ancestralidade como gesto artístico: pintura em vidro, memória e identidade no projeto A gente é muita gente
Confira a programação
No dia 5 de abril, a artista Ciana Brandão realiza o quinto e último ateliê aberto do projeto A gente é muita gente, que investiga ancestralidade e identidade por meio da pintura em vidro. O encontro acontece em seu ateliê no bairro Santa Teresa, em Belo Horizonte, e contará com uma roda de conversa com os convidados Davi Aroeira (historiador), Paulo Nazareth (artista) e Leonardo Alves (curador), além de música ao vivo.
O projeto, fomentado pela Lei Municipal de Incentivo à Cultura (LMIC), abre o processo de criação ao público antes da exposição prevista para o segundo semestre. Essa será a última oportunidade de acompanhar o desenvolvimento das obras e as reflexões que atravessam essa pesquisa.
Ciana desenvolve no projeto uma investigação que cruza técnica, identidade e memória, tendo como suporte a pintura em vidro. O trabalho, que nasce do desejo de aprofundar uma linguagem autoral e amadurece como uma reflexão sobre ancestralidade afro-indígena e apagamento histórico, parte da micro-história da artista para provocar questões coletivas.
“Quando percebi que estava recebendo fomento público, me senti convocada a expandir a ideia inicial dos autorretratos. Passei a me perguntar: o que posso devolver à sociedade em forma de obra que também conecte com minhas inquietações?”, conta Ciana. A investigação teve início ainda em 2021, durante o projeto de residência organizado pelo Movimento Arte na Maternidade (MAM), quando a artista criou uma série de cinco pinturas baseadas em fotografias familiares de mulheres com bebês no colo — entre elas, ela mesma com sua filha Teresa, sua mãe, avó, bisavó e tataravó.
No projeto atual, a artista mergulha ainda mais fundo: são sete retratos, um para cada geração de sua linhagem materna, começando por sua filha Teresa e voltando até Maria Rita — ancestral sobre quem pairam lacunas e mistérios, mas cuja presença simbólica, segundo Ciana, ancora a pesquisa. “Não havia foto da mãe de Andrelina, minha tataravó. Comecei a pintá-la a partir da imaginação, da especulação, como forma de me perguntar: o que aconteceu com a gente? Você sabe de onde veio? Olha o que eu descobri da minha história…”
O vidro, suporte que Ciana experimenta desde sua formação na Escola Guignard e no intercâmbio na Universidade do Porto, torna-se matéria ideal para tensionar opacidades e transparências — tanto da tinta quanto da história. “Antes de pintar no vidro, eu já imaginava imagens translúcidas, suspensas, em palco, em vídeo, em instalação. O vidro permite que a imagem seja vista em camadas, que o olhar encontre texturas, detalhes, movimentos da tinta. Existe uma macroimagem, mas também uma série de microimagens que contam outras histórias”, explica.
A artista associa o comportamento da tinta — que se move, dilui, se transforma com o solvente — ao próprio gesto de reconstruir narrativas turvas. “Meu trabalho é sobre olhar de perto, com lupa, para o que nos contaram, para o que não está documentado. A história do Brasil também é feita desses vazios.”
A formação técnica de Ciana em litogravura, serigrafia e gravura em metal constrói a base da sua linguagem visual. “Sou a soma de todas as experiências que me atravessaram. Enquanto estudava artes plásticas na Guignard, também fazia teatro no CEFART. A gravura me encantava pelo tempo do fazer e pelas repetições, algo que também está presente no teatro, com seus processos artesanais. Hoje, o que produzo é um híbrido disso tudo.”
A ideia de auto-retratação, que orienta o projeto, desloca o autorretrato da imagem para o gesto. “Retratar é também re-tratar: cuidar, curar, ter trato com uma dor. Ao olhar para minhas ancestrais, estou olhando para mim — e para as violências que atravessam nossa formação. Sempre ouvi dizer que minha bisavó foi ‘pega no laço’. Essa expressão vive no imaginário popular, mas precisamos refletir sobre o que ela realmente significa. O que herdamos dessas histórias apagadas é um desencanto. Mas herdei também algo potente: a energia.”
Essa energia, segundo Ciana, está simbolicamente representada na mitocôndria — organela celular transmitida exclusivamente pela linhagem materna e responsável pela produção de energia no corpo. “A metáfora da mitocôndria me alimenta artisticamente. A energia está em tudo: na criação, na maternidade, na fé, na cena, no gesto de pintar. Se herdamos o desencanto, herdamos também a força de continuar, de produzir vida e arte.”
A gente é muita gente será transformado em exposição no segundo semestre. Até lá, Ciana segue articulando técnica, política e poética com um olhar que começa no espelho e se estende até o coletivo. “Sou um exemplo micro de uma artista que entendeu que é preciso revisitar o que nos foi contado como História. A arte tem o poder de permitir o mistério, de alcançar o que o pensamento cartesiano não dá conta. E talvez seja por aí que a gente reencontre um pouco do que fomos — e do que ainda podemos ser.”
Serviço
Data: 5 de abril de 2025
Local: Ateliê de Ciana Brandão – Rua São Gotardo 126,Santa Teresa, Belo Horizonte
Horário: A partir das 14h
Roda de conversa: 17h
O evento é gratuito e aberto ao público.
22°49'34.1"S 45°39'45.4"W
(22 graus 49 minutos 34 segundos SUL; 45 graus 39 minutos, 45 segundos OESTE)
POR FLAVIANA LASAN
Os meridianos são linhas imaginárias que cortam a Terra no sentido norte-sul, ligando um pólo ao outro. Os paralelos são linhas imaginárias que circulam a Terra no sentido leste-oeste. A coordenada geográfica exposta no título deste texto, é obtida pela interseção de um meridiano e um paralelo. Ou seja, o território é imaginação.
Uma imaginação ainda concentrada na deterioração dos sentidos, determinante para desabitar seres a partir do coração bélico. Nesta circunstância, provoca o início da re-volta, este ato de voltar não para buscar algo, mas para levar de volta o que existiu. E então, pássaros apareceram em um sonho como a história apareceu nos livros. Pássaros também cortam a Terra de um pólo ao outro e não são imaginários. Documentam entre pousos e vistas um território que nem mesmo nós temos alcance. Sobrevoam a memória coletiva e cantam as existências individuais. Talvez a investigação da própria vida seja como um pássaro. O ponto geográfico que estamos é a cidade de Santo Antônio do Pinhal, estado de São Paulo. Neste lugar que hoje está coordenado no mapa, a leste ou a sul, do oeste ao norte; entre movimentos lentos das massas terrestres, um parto indígena se fez. Começa um trajeto sanguíneo que permanece em Belo Horizonte, no estado de Minas Gerais. Entre este trajeto, a fotografia se torna condutora de uma insurreição, fixando entre dizeres que passaram de geração a geração; da palavra de mãe na boca das filhas, a história:
- Uma mulher gerou a mulher, que viria a gerar uma outra mulher e essa outra mulher gerou uma pessoa.
A oralidade, esta produção sonora, transmuta para composição química. Os vestígios que surgem nas fotografias são dissolvidos, remetendo a mapas emocionais, conectando lugares e ficções; enchendo de luz a escuridão histórica. O vidro é a materialidade do presente que suporta as relações soterradas. O comovido processo de abstração da realidade a partir da dissolução química, que inicialmente parecia um ato de negação, apagando o que estava registrado, torna-se uma metáfora para a recriação e ressignificação. O vidro converte-se no questionamento das narrativas oficiais e propõe que a história não se limite aos registros lineares; ela é também sonho, intuição e matéria dissolvida que pode ser reinterpretada.
- “O futuro tem um coração antigo.”1 1 Carlo Levi – pintor, escritor e antifascista italiano.
Ao passo que se corre atrás de arquivos, busca-se por ser arquivada. Entre impressos administrativos, livros, manuscritos; nas certidões que apreciam o incerto; em fotos que de papel se multiplicam em jpg, png, tiff, raw...sobrevém, na tecnologia da pintura, o caos íntimo de permanecer imaginada fora do território. O afeto, que a burocracia não arquiva, se inscreve na arte como última tentativa de permanência.
Foto: Negron
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