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18ª Mostra de Tiradentes: valorização do cinema brasileiro de autor
Onde e como assistir a filmes cuja exigência de imersão ultrapassa as infinitas possibilidades de comunicação hoje existentes na sociedade? De que maneira fazer da experiência cinematográfica mais clássica – o ritual coletivo de se entrar numa sala escura de tela gigante e se deixar levar por aquilo ali exibido – ainda, afinal, umaexperiência? Estas e outras questões permearam toda a 18ª Mostra de Cinema de Tiradentes, desde a temática central: “Qual o lugar do cinema hoje?”. Proposta pelo curador Cléber Eduardo, a ideia problematiza o excesso de telas e dispositivos como meios de difusão e visão audiovisual, o que tem modificado as maneiras de se relacionar com o que se assiste.
“Vivemos um tempo de concentrações meia fase, de cognições em modo avião e de atenção sleep mode, com narrativas cinetelevisivas ou prototelevisivas adequadas a essa sensibilidade multiconectada simultaneamente em muitas coisas”, diz Cléber Eduardo. “A experiência cinematográfica é hoje quase reacionária, com sua determinação de tempo e exigência para o espectador. Com tantos estímulos e dispersões, dá para dizer que até dormir durante um filme no cinema se tornou quase um ato político”. Num debate sobre o assunto, Felipe Bragança levou a figura do realizador à questão. “Qual o lugar do cineasta hoje? Que cinema é esse que nós queremos fazer?”, questionou. “Talvez a gente possa entender que a referência do lugar do cinema está misturada a todas as outras referências culturais”.
A programação da Mostra refletiu várias destas questões, ao propor filmes nos quais a experiência é essencial para a fruição. “O cinema de autor precisa da tela grande”, frisou Cléber Eduardo. Na sua vocação em apresentar novas propostas estéticas de realização, a Mostra contou com trabalhos como “Medo do Escuro”, do cearense Ivo Lopes Araújo, em que a trilha sonora é tocada ao vivo durante a projeção. Ou “Noite”, de Paula Gaitán, no qual a sensorialidade de ambientes de música eletrônica e corpos iluminados só ganham força maior se projetadas em alto som e imagem cristalina.
De fato, os longas e curtas exibidos na Mostra, com todas as diferenças entre uns e outros, guardaram uma semelhança essencial: propuseram questões e problemas, não se limitando apenas à visionagem na tela, mas ainda à discussão, à crítica e a uma intensa troca de ideias. O Seminário do Cinema Brasileiro, no Cine-Teatro Sesi, seguiu como espaço privilegiado, seja debatendo filmes específicos, seja lidando com questões mais amplas. Alguns encontros mais acalorados trouxeram inclusive a própria crítica à baila, como no bate-papo sobre “Casa Grande”, de Fellipe Barbosa, em que o crítico Victor Guimarães apresentou alguns dos incômodos que sentia em relação ao filme. “O crítico sempre terá toda a liberdade para problematizar. O realizador, de responder. O crítico, de ter sua réplica. Não se trata de monólogos na paralela”, afirmou Cléber Eduardo.
Como apontado pelo jornalista Luiz Carlos Merten, um debate fez história na Mostra:“Trânsito entre Telas”, em que se discutiram as relações do cinema com a televisão, tendo enfoque nas diferenças e semelhanças de linguagem e as maneiras como um se alimenta do outro em tempos de “video on demand” (como Netflix) e produções televisivas cada vez mais elaboradas. José Luiz Villamarim, diretor de núcleo da Globo, fez uma afirmação corajosa: “A TV brasileira deseducou o olhar das pessoas. Precisamos reverter isso”. Ao seu lado, Marcos Bernstein, roteirista e cineasta, comentou que o melodrama sempre foi uma vertente mais forte no país e que produções de outros gêneros precisam ter cuidado para não serem tomadas pelo dramalhão, o que se torna um grande desafio. “Mesmo séries internacionais tão comentadas e respeitadas, como ‘Mad Men’, se constituem a partir do melodrama”, disse.
Homenagem amazônica
De variedades e transições, a homenageada deste ano entende. A atriz paraense Dira Paes foi a estrela deste ano, esbanjando simpatia e inteligência por onde circulou e mostrando o quanto valoriza o pensamento em torno do próprio ofício. Com 30 anos de carreira, Dira contou ter recusado personagens dos quais não gostava. “Foi um risco, é claro”, admitiu. Ela acertou, já que se tornou, ao longo do tempo, nome respeitado em todos os tipos de projeto – da comédia popular à produção independente. “Tento fazer das mulheres que interpreto representantes da miscigenação brasileira da qual eu faço parte”, frisou. Em Tiradentes, ela estreou “Órfãos do Eldorado” logo na abertura, com direção de Guilherme Coelho.
A política se fez presente em dois momentos específicos da mostra. Na mesa “O lugar da política no cinema”, Luiz Rosemberg Filho defendeu um cinema de engajamento subjetivo, e não didático. “Eu trabalho a subjetividade com a política nos meus filmes e não gosto da obviedade. Quero que pensem a partir do que eu fiz, sem dar respostas prontas”, afirmou. Anita Leandro, diretora de “Retratos de Identificação”, reforça: “Todo o estudo da teoria do cinema passa por pensar o lugar do espectador. Com a política nas telas, essa participação vai para primeiro plano”.
Em outro encontro político, o assunto foram as políticas públicas. O assessor especial do Ministério da Cultura, Adriano de Angelis, foi desafiado pela coordenadora geral da Mostra, Raquel Hallak, a apresentar um plano de trabalho para a Cinemateca Brasileira em junho, quando acontece a CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto. A partir de uma convocatória, foi desenvolvida a Carta de Tiradentes 2015. O documento propõe ao ministro Juca Ferreira cinco ações estruturantes, entre elas a criação de um Conselho Nacional de Política Audiovisual, o fortalecimento do Fundo Setorial do Audiovisual e o revigoramento do Ctav (Centro Técnico do Audiovisual). “Acreditamos que estas iniciativas vão de encontro aos anseios não apenas dos profissionais do audiovisual, mas de toda a sociedade brasileira”, registra a carta.
Deslocamento e retornos
Inadvertidamente, a seleção de longas da 18ª Mostra de Tiradentes acabou por se apresentar como um conjunto de filmes em que o movimento de personagens e corpos (nem sempre um sendo necessariamente o outro) deu a tônica das imagens e sons. O movimento, sim, mas também a inação, o sedentarismo, sempre a partir de um desencaixe originário. “Deslocar-se como válvula de escape, como sobrevivência, por falta de perspectiva ou como colocação ao acaso. Mas se desloca para onde? E aonde se chega?”, escreve Cléber Eduardo no catálogo.
O deslocamento pôde ser visto como essência em filmes como “De Punhos Cerrados”, do coletivo Alumbramento, ou “O Signo das Tetas”, de Frederico Machado. Da inação provocada por movimento anterior, vieram, por exemplo, “Órfãos do Eldorado”, “A Casa de Cecília” e “Teobaldo Morto, Romeu Exilado”, ambos pautados por uma “invasão” que reconfigura a dinâmica de relações em cena. “A fuga da realidade e o isolamento parte de uma crise, e não só de escolhas”, disse Pedro Diógenes, um dos realizadores de “Com os Punhos Cerrados”. O olhar intimista e de afeto e cumplicidade, porém, também se fez presente em espaço isolado: a casa do artista plástico retratado em “Mais do eu Possa me Reconhecer”, de Allan Ribeiro – cineasta que, aliás, torna-se parte intrínseca de seu filme ao fazer de si mesmo personagem em constante interação com a figura documentada.
As relações e conflitos de classes se fizeram muito fortes em alguns dos títulos mais controversos a serem apresentados na Mostra. “Casa Grande”, numa chave mais naturalista, e “Brasil S/A”, de Marcelo Pedroso, através da alegoria, refletiram os novos tempos de inserção econômica e o efeito disso nas classes mais favorecidas.“Medo do Escuro”, de Ivo Lopes Araújo, trouxe uma distopia de ficção científica sobre uma Fortaleza de lixo e escombros, quase como se fosse um país após o colapso anunciado pelas imagens de protesto de “Ressurgentes – Um Filme de Ação Direta”, de Dácia Ibiapina. Através do horror, “As Fábulas Negras” ironizou a política e o descaso com obras públicas, aproveitando o mote de narrar lendas folclóricas brasileiras para ir direto na jugular de uma sociedade doente.
A partir de tantas questões e provocações, a 18ª Mostra de Cinema de Tiradentes – que contou com mais de 35 mil participantes ao longo de nove dias de evento na cidade histórica mineira – termina sem respostas prontas, e por isso mesmo o estímulo é ainda maior. Nunca a pergunta “qual é o futuro do cinema?” pareceu fazer tanto sentido quanto neste começo de século. Porque esse futuro vai depender sobre qual o lugar do cinema – ou, principalmente, se ele terá lugar no contexto no qual vivemos. Em Tiradentes, certamente, o cinema tem lugar garantido sempre.
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